4.9.07

A grandeza que humilha


No dia 22 de maio de 1970, o jornal O Globo publicava mais um capítulo de As Confissões de Nelson Rodrigues:


1- Ao voltar, certo dia, do Jockey Club, Calígula chama os seus conselheiros: “Descobri que o Senado Romano não chega aos pés do Velho Senado de Machado de Assis". Os presentes, num coro afiadíssimo, disseram: “Não chega aos pés do Velho Senado de Machado de Assis"? Continua Calígula: "E por que? Por que"? Calígula dá um murro na mesa: “Vocês não sabem”?

2- Nenhum dos presentes sabia, nem desconfiava. Calígula os descompôs de alto a baixo: “Imbecis! Imbecis"! E explicou, enojado de ignorância tamanha: “O Senado Romano não anda, porque não tem um cavalo”! Os conselheiros começaram a berrar: “Falta um cavalo! Falta um cavalo"! E, então, depois de beber uma taça de vinho raro e translúcido, Calígula resolve abrir um concurso de cavalos para o Senado.

3- E assim se fez. No dia seguinte, inscreveram-se uns trinta mil cavalos, todos puro-sangue. O próprio Calígula pôs-se a interrogar os candidatos. Diga-se de passagem que os concorrentes só tinham que responder a uma pergunta, que era a seguinte: “O que é a Política”? Os cavalos não sabiam responder. Como no “Céu é o Limite”, tinham um prazo de trinta segundos. Eis a dura verdade: ninguém, ali, sabia o que era Política. E os reprovados escouceavam de impotência e frustração.

4- Finalmente, restou um único cavalo. Ofegante, Calígula repete a pergunta: “O que é a Política”? O candidato respondeu na hora: “A Política é a arte de não fazer restrição”. Ou, se bem o interpreto, a arte de não fazer nada, nem restrição. Calígula pulou. Com uma inflexão, tomada de empréstimo ao J. Silvestre, bradou: “Absolutamente certo”! A imprensa nacional e estrangeira avançou para o vencedor: “Mas o que V. Exa. quis dizer”?

5- Dirão vocês que a profundeza do nobre animal era dessas que uma formiguinha atravesse, a pé, com água pelas canelas. Mas o que o vulgo não sabe é o seguinte: vários colegas meus afogam-se exatamente com água pelas canelas. E, então, com delicada ironia, disse o cavalo: “Não fazer nada é não fazer nada”. O correspondente do Life insistiu: “Mas um senado deve satisfações ao seu eleitorado”. O cavalo pensou: “Que animais”! Relinchou: “Vejam o meu caso: eu não vou fazer nada”. Foi aí que o enviado especial do Paris-Match mandou por escrito a pergunta: "V. Exa. não pretende nem tapar cano furado”? Resposta: “Nem cano furado”.

6- O belíssimo animal, vencedor de vários Sweepstakes, tomou posse no dia seguinte. O Senado o aplaudiu de pé, como se aplaude um tenor italiano. Das galerias lotadas, choviam papel picado, listas telefônicas. Resta dizer que o novel Senador passou a chamar-se, por sugestão de Haroldo Barbosa, Incitatus. Foi considerado a maior figura do Senado Romano, em todos os tempos, porque jamais tapou um cano furado, jamais consertou uma bica entupida. Certa vez, faltou água no chafariz da Praça da Bandeira. E quanto pediram a Incitatus, a respeito de tal seca, um parecer, retrucou: “Ah, falta água. Azar”! Resposta, como se vê, que Maria Antonieta assinaria.

7- Dirá algum fanático da verossimilhança, algum maníaco da veracidade histórica, algum idiota da objetividade, que acabei de tecer uma fantasia irresponsável. Nem tanto, nem tanto. Diria eu que o importante é não fazer. O sujeito que faz, simplesmente faz, arrisca-se ao infinito. Pouco depois da República, morreu um ministro da Agricultura. Não sei por que cruel fatalidade, os sucessivos ministros da Agricultura passaram a não fazer nada, absolutamente nada. Mas volto ao cemitério. Até o presidente da República compareceu. Era em 1902, ou seria 108, sei lá. E quando o quinto orador já limpava um imaginário pigarro, Além se antecipou.

8- Era um bêbado. Mas como já dizendo, o pau-d’água começou a soluçar: “Este grande homem, que todo o Brasil chora”. Arqueja e continua: “Ministro da Agricultura, nunca plantou um pé de alface, nunca plantou um pé de couve, nunca plantou uma melancia”. Era verdade. E por que o ilustre não fizera nada, nem isso, a nação, agradecida, embrulhou seu caixão na bandeira nacional. Sua ociosidade teve, assim, uma apoteose fúnebre nunca vista.

9- Bem. Tudo o que ficou dito atrás é uma introdução a Mario Andreazza, o Ministro. Faltou-lhe um amigo que soprasse o luminosíssimo conselho: “Não faça nada, não faça nada”. Aquele que faz, apenas faz, e não quer senão fazer, está desafiando as potências do destino político. A sólida maioria dos que nada fazem perdoa tudo, menos a maldita vontade de fazer.

10 – Ele está fazendo sua obra com uma obstinação fanática e suicida. A primeira vez em que ouvi seu nome foi num sarau de grã-finos. Eu estava num grupo quando alguém falou no apartamento de Andreazza. Entre parênteses, para mim não há nome intranscendente. O nome, repito, insinua um vaticínio. Ninguém se chama Andreazza por acaso.

11- Quem não compra um apartamento? E, se não compra, quem não aluga um apartamento? Todos moramos em apartamentos alugados ou comprados. Todavia, no presente caso, o apartamento, por se tratar de Andreazza, mereceu uma inflexão especialíssima ou, melhor dizendo, uma inflexão vil. E o fato é que um puxou o assunto e os outros o trataram, com frívola e jucunda ferocidade.

12- E, então, pensei: “Esse homem deve estar fazendo muito". Foi a primeira intuição que me ocorreu e maravilhosamente certa. Mas quis eu conhecer a história e a lenda de tal apartamento. Perguntam: “Mas você não sabe”? Para minha vergonha e humilhação, não sabia. E, então, uns dois ou três incumbiram-se de descrever a residência do Ministro. Paredes de mármore, chão de mármore, bicas de ouro. O mais modesto tapete de Andreazza custava uma fortuna. O lustre, mesmo apagado, estilhaçava diamantes. Piscina suspensa, com crocodilos deslizando, sem marola. Numa pequena sala, havia uma cascata artificial, com filhotes de jacaré, etc. etc..

13- No fim, eu já imaginava que o morador do prodigioso apartamento era, não o Andreazza, mas o rei da Arábia Saudita. Os sujeitos me juraram: "Vai lá, rapaz, vai lá”. Não acreditei, e o confesso, em nada. Disse eu: “Esse homem não é isso”. Ninguém ignora que, no Brasil, a glória é uma pirâmide de injúrias, de insultos, de palavrões. Só poupamos a mediocridade provadamente estéril. Eu poderia citar cem exemplos. Um deles seria o de Oswaldo Cruz. Lá fora, o simples nome do Brasil bastava para exalar a febre amarela, a peste bubônica, a varíola. Todos os dias, o brasileiro morreria das pestes citadas. Aconteceu então o seguinte: a imprensa abriu uma feroz campanha contra Oswaldo Cruz e a favor da febre amarela, contra Oswaldo Cruz e a favor da peste bubônica, contra Oswaldo Cruz e a favor da varíola. No fundo o que se queria era um Incitatus na Saúde Pública.

14- Volto a Mario Andreazza. Tratei de saber quem era ele, como era ele. Em primeiro lugar, o seu apartamento, como o descrevem, é uma fantasia muito cínica. Nunca existiu. Os colegas Francisco Pedro do Couto e Armando Santos, interrogados por mim, deram-me ainda ontem vários dados concretos, inclusive este: Juscelino fez 2.500 quilômetros de asfalto. Andreazza: 5.500 quilômetros. Até fins de 70, Andreazza chegará aos 10 mil. Não há duvida possível, nem sofisma: é uma obra gigantesca. Um homem desses está ajudando a fazer o Brasil. Muitos dizem: "É um louco, é um louco”! Outros, fingindo simpatia e boa fé, baixam a voz: “O Andreazza está exagerando. É demais, é demais”! Quanto ao apartamento, é desses que qualquer um de nós, qualquer brasileiro da boa e abnegada classe média, pode alugar, comprar, morar, etc. etc..

15- Homens assim têm uma vocação de grandeza que humilha e ofende os demais.


[Nelson Rodrigues; "Um brasileiro chamado Andreazza", em: As confissões de Nelson Rodrigues, 22/05/1970].

11 comentários:

Anônimo disse...

Não fossem por todos os outros extraordinários textos do Nelson Rodrigues, este já bastaria, né?, Andreazza. Que bela defesa! Os cínicos, covardes e medíocres não costumam gostar do grande Nelson Rodrigues.

C.A. disse...

Tenho esta página de O Globo pendurada diante de mim, aqui no escritório, Olga, e a acho, como se diz, um luxo.

Olga disse...

É um luxo mesmo.

Meu primeiro contato com o Nelson Rodrigues foi através do cinema, no filme "Bonitinha mas ordinária". Os mais velhos diziam que o Nelson era um tarado e etc e tal. Fui e fiquei doida com as inversões. A puta tinha mais ética e moral que a menininha de família, que loucura! pra minha mente ainda tão pequena. Achei tudo aquilo genial e comecei a ler as crônicas, tudo que se relacionasse a ele me interessava, aí apaixonei... E ao contrário do que você acha, Andreazza, penso que o mundo teatral compreendeu a obra dele e lhe rendeu grandes homenagens, com peças teatrais bastante interessantes.

C.A. disse...

Eu acho, Olga, sinceramente, qu´ele debochou do mundo teatral.

Olga disse...

Na verdade, Andreazza, acho que ele precisou do teatro pra ganhar uma graninha. Mas se ele debochou do teatro, viva o deboche!, pois quem ganhou mais fomos nós (eu e outros que gostamos de teatro, não você), já que o teatro fez uma boa divulgação da obra dele. E mais não digo. (rsrs)

C.A. disse...

Olga, a dramaturgia do Nelson, como as de Shakespeare e Moilière, entre outros poucos, fez-me muito bem também, pois que seus textos podem ser apreciados para bem além dos palcos - na leitura. E tenho dito!

Anônimo disse...

Vai ao Maraca hoje, Andreazza?

C.A. disse...

Não, Focca. Hoje, não. Mas estive lá nesta seqüência toda... Você vai?

Anônimo disse...

Tô meio desanimado hoje. Tive desfalcado, meu pai veio de Buenos Aires... Bom, mas assim como vc, tu sabes que tb freqüento as especiais. Sempre tento marcar com vc de ir aos jogos, mas vc se esquiva.

C.A. disse...

Eu não me esquivo, Focca. Estou sempre lá, no mesmo lugar, sob o mesmo sofrimento...

Anônimo disse...

Flamengo x Cruzeiro irei te encontrar (é o próximo, se não me engano). Será uma feliz coincidência, visto que a última vez que nos encontramos lá foi neste mesmo embate, como gol do inigualável Renato.