
No dia 22 de maio de 1970, o jornal O Globo publicava mais um capítulo de
As Confissões de Nelson Rodrigues:
1- Ao voltar, certo dia, do Jockey Club, Calígula chama os seus conselheiros: “Descobri que o Senado Romano não chega aos pés do Velho Senado de Machado de Assis". Os presentes, num coro afiadíssimo, disseram: “Não chega aos pés do Velho Senado de Machado de Assis"? Continua Calígula: "E por que? Por que"? Calígula dá um murro na mesa: “Vocês não sabem”?
2- Nenhum dos presentes sabia, nem desconfiava. Calígula os descompôs de alto a baixo: “Imbecis! Imbecis"! E explicou, enojado de ignorância tamanha: “O Senado Romano não anda, porque não tem um cavalo”! Os conselheiros começaram a berrar: “Falta um cavalo! Falta um cavalo"! E, então, depois de beber uma taça de vinho raro e translúcido, Calígula resolve abrir um concurso de cavalos para o Senado.
3- E assim se fez. No dia seguinte, inscreveram-se uns trinta mil cavalos, todos puro-sangue. O próprio Calígula pôs-se a interrogar os candidatos. Diga-se de passagem que os concorrentes só tinham que responder a uma pergunta, que era a seguinte: “O que é a Política”? Os cavalos não sabiam responder. Como no “Céu é o Limite”, tinham um prazo de trinta segundos. Eis a dura verdade: ninguém, ali, sabia o que era Política. E os reprovados escouceavam de impotência e frustração.
4- Finalmente, restou um único cavalo. Ofegante, Calígula repete a pergunta: “O que é a Política”? O candidato respondeu na hora: “A Política é a arte de não fazer restrição”. Ou, se bem o interpreto, a arte de não fazer nada, nem restrição. Calígula pulou. Com uma inflexão, tomada de empréstimo ao J. Silvestre, bradou: “Absolutamente certo”! A imprensa nacional e estrangeira avançou para o vencedor: “Mas o que V. Exa. quis dizer”?
5- Dirão vocês que a profundeza do nobre animal era dessas que uma formiguinha atravesse, a pé, com água pelas canelas. Mas o que o vulgo não sabe é o seguinte: vários colegas meus afogam-se exatamente com água pelas canelas. E, então, com delicada ironia, disse o cavalo: “Não fazer nada é não fazer nada”. O correspondente do
Life insistiu: “Mas um senado deve satisfações ao seu eleitorado”. O cavalo pensou: “Que animais”! Relinchou: “Vejam o meu caso: eu não vou fazer nada”. Foi aí que o enviado especial do
Paris-Match mandou por escrito a pergunta: "V. Exa. não pretende nem tapar cano furado”? Resposta: “Nem cano furado”.
6- O belíssimo animal, vencedor de vários
Sweepstakes, tomou posse no dia seguinte. O Senado o aplaudiu de pé, como se aplaude um tenor italiano. Das galerias lotadas, choviam papel picado, listas telefônicas. Resta dizer que o novel Senador passou a chamar-se, por sugestão de Haroldo Barbosa, Incitatus. Foi considerado a maior figura do Senado Romano, em todos os tempos, porque jamais tapou um cano furado, jamais consertou uma bica entupida. Certa vez, faltou água no chafariz da Praça da Bandeira. E quanto pediram a Incitatus, a respeito de tal seca, um parecer, retrucou: “Ah, falta água. Azar”! Resposta, como se vê, que Maria Antonieta assinaria.
7- Dirá algum fanático da verossimilhança, algum maníaco da veracidade histórica, algum idiota da objetividade, que acabei de tecer uma fantasia irresponsável. Nem tanto, nem tanto. Diria eu que o importante é não fazer. O sujeito que faz, simplesmente faz, arrisca-se ao infinito. Pouco depois da República, morreu um ministro da Agricultura. Não sei por que cruel fatalidade, os sucessivos ministros da Agricultura passaram a não fazer nada, absolutamente nada. Mas volto ao cemitério. Até o presidente da República compareceu. Era em 1902, ou seria 108, sei lá. E quando o quinto orador já limpava um imaginário pigarro, Além se antecipou.
8- Era um bêbado. Mas como já dizendo, o pau-d’água começou a soluçar: “Este grande homem, que todo o Brasil chora”. Arqueja e continua: “Ministro da Agricultura, nunca plantou um pé de alface, nunca plantou um pé de couve, nunca plantou uma melancia”. Era verdade. E por que o ilustre não fizera nada, nem isso, a nação, agradecida, embrulhou seu caixão na bandeira nacional. Sua ociosidade teve, assim, uma apoteose fúnebre nunca vista.
9- Bem. Tudo o que ficou dito atrás é uma introdução a Mario Andreazza, o Ministro. Faltou-lhe um amigo que soprasse o luminosíssimo conselho: “Não faça nada, não faça nada”. Aquele que faz, apenas faz, e não quer senão fazer, está desafiando as potências do destino político. A sólida maioria dos que nada fazem perdoa tudo, menos a maldita vontade de fazer.
10 – Ele está fazendo sua obra com uma obstinação fanática e suicida. A primeira vez em que ouvi seu nome foi num sarau de grã-finos. Eu estava num grupo quando alguém falou no apartamento de Andreazza. Entre parênteses, para mim não há nome intranscendente. O nome, repito, insinua um vaticínio. Ninguém se chama Andreazza por acaso.
11- Quem não compra um apartamento? E, se não compra, quem não aluga um apartamento? Todos moramos em apartamentos alugados ou comprados. Todavia, no presente caso, o apartamento, por se tratar de Andreazza, mereceu uma inflexão especialíssima ou, melhor dizendo, uma inflexão vil. E o fato é que um puxou o assunto e os outros o trataram, com frívola e jucunda ferocidade.
12- E, então, pensei: “Esse homem deve estar fazendo muito". Foi a primeira intuição que me ocorreu e maravilhosamente certa. Mas quis eu conhecer a história e a lenda de tal apartamento. Perguntam: “Mas você não sabe”? Para minha vergonha e humilhação, não sabia. E, então, uns dois ou três incumbiram-se de descrever a residência do Ministro. Paredes de mármore, chão de mármore, bicas de ouro. O mais modesto tapete de Andreazza custava uma fortuna. O lustre, mesmo apagado, estilhaçava diamantes. Piscina suspensa, com crocodilos deslizando, sem marola. Numa pequena sala, havia uma cascata artificial, com filhotes de jacaré, etc. etc..
13- No fim, eu já imaginava que o morador do prodigioso apartamento era, não o Andreazza, mas o rei da Arábia Saudita. Os sujeitos me juraram: "Vai lá, rapaz, vai lá”. Não acreditei, e o confesso, em nada. Disse eu: “Esse homem não é isso”. Ninguém ignora que, no Brasil, a glória é uma pirâmide de injúrias, de insultos, de palavrões. Só poupamos a mediocridade provadamente estéril. Eu poderia citar cem exemplos. Um deles seria o de Oswaldo Cruz. Lá fora, o simples nome do Brasil bastava para exalar a febre amarela, a peste bubônica, a varíola. Todos os dias, o brasileiro morreria das pestes citadas. Aconteceu então o seguinte: a imprensa abriu uma feroz campanha contra Oswaldo Cruz e a favor da febre amarela, contra Oswaldo Cruz e a favor da peste bubônica, contra Oswaldo Cruz e a favor da varíola. No fundo o que se queria era um Incitatus na Saúde Pública.
14- Volto a Mario Andreazza. Tratei de saber quem era ele, como era ele. Em primeiro lugar, o seu apartamento, como o descrevem, é uma fantasia muito cínica. Nunca existiu. Os colegas Francisco Pedro do Couto e Armando Santos, interrogados por mim, deram-me ainda ontem vários dados concretos, inclusive este: Juscelino fez 2.500 quilômetros de asfalto. Andreazza: 5.500 quilômetros. Até fins de 70, Andreazza chegará aos 10 mil. Não há duvida possível, nem sofisma: é uma obra gigantesca. Um homem desses está ajudando a fazer o Brasil. Muitos dizem: "É um louco, é um louco”! Outros, fingindo simpatia e boa fé, baixam a voz: “O Andreazza está exagerando. É demais, é demais”! Quanto ao apartamento, é desses que qualquer um de nós, qualquer brasileiro da boa e abnegada classe média, pode alugar, comprar, morar, etc. etc..
15- Homens assim têm uma vocação de grandeza que humilha e ofende os demais.
[Nelson Rodrigues; "Um brasileiro chamado Andreazza", em: As confissões de Nelson Rodrigues, 22/05/1970].