15.10.07

Rachel de Queiroz e o pecado da carne

Maré baixa, de Rachel de Queiroz, publicada na revista O Cruzeiro de 5 de dezembro de 1973:

Se a carne é a fraca e o espírito o forte, evidentemente a carne cansou. Essa história de pornô, que parecia uma onda avassaladora a devorar a civilização cristã, já entra bem na maré baixa, principalmente onde parecia ter os seus focos mais eruptivos. Na Dinamarca, que por algum tempo foi a capital universal da pornografia com praticamente todo um bairro de Copenhague dedicado à especialidade - lojas, cinemas, night-clubs, teatros, livrarias e bordéis -, lá, o comércio pornográfico entrou em tal recesso que a maioria dos estabelecimentos fechou portas ou se dedicou a outros ramos, porque a exploração dos chamados baixos instintos do homem não estava mais compensando. É o que contam os turistas.

Na literatura, no cinema, já se esboça uma reação – ou antes, uma retração; porque a permissividade não é geralmente combatida. Ela se insinua, é aceita, penetra – há um momento em que parece que vai tomar conta de tudo -, mas nesse auge começa a cansar e acaba naquela grande fadiga e nojo.

Aos poucos, parece, tudo irá voltando às proporções de antes. Ou talvez não volte nada ao que era antes; muitos tabus foram quebrados, muitas liberdades conquistadas. Mas sobre tudo isso há de pairar uma nova inocência, fora daquele frenesi malsão que acabara por dividir as populações afetadas em dois grupos cooperativos: uma metade de exibicionistas e a outra metade de voyeurs. Uns se desmandando, os outros vendo e aplaudindo.

A verdade verdadeira é que o pecado da carne é o mais raso e mais pobre de todos os pecados. A inocente colegial dos tempos de dantes ouvia falar veladamente nos abismos do “mundo” e imaginava com temor e curiosidade que abismos seriam esses, que prazeres, que delírios suas profundidades esconderiam. Mas, chegada a idade adulta e a experiência, descobre que afinal o pecado da carne está muito mais na imaginação do que na carne propriamente; que, esvaziado das ilusões do amor, é monótono, fatigante, mecânico. As invenções delirantes do Marquês de Sade não passam mesmo de invenções e delírios de maluco. Na realidade não existem, são meras lucubrações de paranóia, impraticáveis. A louca mocidade de Santo Agostinho, à luz do que se vai sabendo, quão louca seria? E, mormente, parece que é esta a grande descoberta post-onda: ao contrário do que se suponha e se pregava, a gratificação trazida pela carne é muito pouca e muito curta. Sexo (que no final de contas toda essa mitologia se reduz apenasmente a sexo), sexo é uma função do corpo, como o comer e o respirar, e dela se pode tirar muito pouca coisa, além da sua destinação específica. Quer dizer que a mais desvairada das Messalinas, com todos os seus delírios, talvez não tire do sexo nada mais do que dele recebe uma honesta mãe de família, bem casada, bem comportada, bem amada.

Sendo assim, então, para que armar pelo mundo toda a imensa máquina da pornô, comercializada e industrializada? É o que o mundo vai descobrindo.


(Ilustração: O pecado original, de Gustave Doré, 1832-83).

3 comentários:

Anônimo disse...

"(..)a mais desvairada das Messalinas, com todos os seus delírios, talvez não tire do sexo nada mais do que dele recebe uma honesta mãe de família, bem casada, bem comportada, bem amada". Que texto atual! Dá-lhe Rachel!

PS: Bela ilustração! Sugestiva, não?

C.A. disse...

Achei a Rachel, digamos, meio preguiçosa neste texto, Olga...

Anônimo disse...

Não sei da preguiça, mas concordo com muitas coisas no texto.