28.6.07

Drummond e a Rio-Niterói

A ponte e a barca, de Carlos Drummond de Andrade, publicada no Jornal da Tarde a 7 de março de 1974 - e, pérola que é, presente na coletânea tribuneira "100 melhores crônicas brasileiras desconhecidas pelo Joaquim Ferreira dos Santos":

Bela, funcional, moderna, espetacular, fora-de-série, gastarei todos os qualificativos entusiásticos em louvor da ponte Rio-Niterói. É obra que leva o brasílio peito a enfunar-se de orgulho. Pessoalmente, estou enfunando o meu. Mas, aqui entre nós, quando me der vontade de atravessar a baía, é de barca que eu vou, oferecendo-me a gratificante sensação do périplo marítimo.

Se viver não é preciso, mas navegar é preciso, como ultimamente se vem repetindo e até cantando, ir a Niterói de lancha ou aerobarco e voltar na mesma engenhoca restitui-nos aquele status de navegantes que perdemos quando nos empenhamos nas tarefas de exploração e povoamento do solo americano. Éramos navegadores, éramos nômades, e o mar constituía nosso chão de terra móvel. A barquinha da Guanabara constitui o último resquício dessa identificação com o mar-oceano, para nós, os despojados netos do “ilustre Gama”. A gente vai lá e volta no mesmo dia, mas consola-se de não ter feito a viagem das índias. E eu vou perder uma emoção dessas?

Para mim, a vantagem da grande ponte é exatamente esta: valoriza o trajeto clássico sobre as ondas. Pode parecer gosto de valsa vienense. Juro que não é. A carga pesada passa por aquela maravilha de concreto e tecnologia, os carros já não necessitam de barcaças para serem transportados de uma a outra cidade. Assim, diminui o movimento na baía, as águas lamberão com mais interesse e melhor ritmo o casco de nossos batéis dedicados ao serviço da aventura humana em sua forma discreta, mas plena de evocações místicas – salve, Netuno! Salve, Superintendência dos Transportes da Baía de Guanabara! Tua sigla STBG não está nos Lusíadas, o que não impede que, passageiro de uma de tuas nove embarcações eu me invista nas transas camonianas de largo espectro, e até mesmo nas espantosas complicações de Odisseu, em suas “nave côncava”, de regresso a Ítaca. E tudo tão barato – sem pedágio, sem sinalização sofisticada, sem os rocamboles da regulamentação severa que presidirá ao uso da ponte.

Ai de mim, que antiquado sou. Admiro a ponte e cultivo a barca. Também sinto saudades do trem-de-ferro, parcialmente derrotado pelas pontes aéreas, e saudades cruciantes do cavalo manso que foi meu veículo exclusivo em antigos percursos serra-acima serra-abaixo. Dispusesse eu de um cavalo castanho para ir à redação entregar minha matéria três vezes por semana, e me fosse permitido montá-lo pelas ex-ruas da cidade, hoje pistas de rolamento, vê lá se os táxis me tinham como cliente. Bicicleta? Seria recusada. O bom e nobre cavalo, menos servo do que companheiro, prudente e forte, disciplinando-se menos pelas rédeas do que por seu próprio senso e experiência imemorial, é que me conduziria pelos caminhos urbanos (se ainda existissem). Sei que estou sonhando. Pelo menos assim recomponho a unidade homem-animal, que durante séculos deu vida à paisagem brasileira, e hoje é mero divertimento de uns raros amadores, ou matéria de apostas.

Riem de mim, por ser antiquado? Sou do tempo de certos prazeres hoje quase desconhecidos. O de andar, por exemplo. Quem anda mais? Estamos sempre correndo ou fugindo de algum perigo institucionalizado. Correndo ou sendo conduzidos por um instrumento corredor. Nossas pernas vão-se tornando dispensáveis, à medida em que rodas e motores se encarregam de levar-nos. A delícia de parar, depois da caminhada; ou num intervalo dela, já não é delícia, mas frustração, no tráfego congestionado. Tais prazeres simplíssimos, mas sem preço, foram-nos subtraídos pelo progresso, conquistado ao preço de suaves comodidades. Como ele é incômodo! E, pior de tudo, essencial à vida, de modo que, sem ele, era uma vez a vida.

Fito a soberba obra de engenharia, destinada à circulação de máquinas (e de homens dentro de máquinas), vedada ao uso direto e pessoal do homem, por exigência do próprio avanço do homem. Linda, linda. Estou orgulhoso. Mas vou de barca, desculpem.

3 comentários:

Felipe Moura Brasil (Pim) disse...

Andreazza, sua música favorita foi feita em função desta crônica: "E o barquinho a deslizar/ No macio azul do mar"...

Anônimo disse...

Mas que bela crônica...imagine só, acordar de manhã e ler Drummond no jornal.... pena q não tive essa sorte!

Vcs têm mais crônicas antigas guardadas? Poderiam mostrar por aqui? Seria muito legal...

Coincidência, esta semana estive em Niteroi, fui de barca e lá estava o Araribóia me esperando...lembrei de vcs...hahahaha

C.A. disse...

Danfern, o arquivo tribuneiro é infinito... Aguarde.